Sempre achei minha vida bem parada. Pelo menos na maior parte dela. Quando aquele parente que você não vê há um bom tempo ou que você não tem muita intimidade —e as vezes preferiria não ter mesmo — pergunta:
— E as novidades?
— Nenhuma.
E a partir daí não tem nem como desenrolar um assunto. Fazer o que?
Fiquei pensando sobre isso. O que significa a minha vida ser parada, repetitiva e monótona? É sempre igual. Acordar cedo para aproveitar o pico de energia que tenho pela manhã; fazer um café no capricho antes de começar a trabalhar; ler algo mais leve; responder os clientes do dia anterior; pausa para aproveitar o sol; almoço, retorno ao trabalho e por aí vai.
Além disso, o que significa gostar de ter uma vida mais “parada”? Será que é algo bom? Necessário?
Me chama a atenção quem vive uma busca constante por novidade. Fazer o mesmo todos os dias me dá uma noção maior de progresso, de cumprimento de metas e de responsabilidade. É realmente gostoso. Já cogitei anos atrás a vida de um “Into The Wild menos wild”, mas não tem jeito, preciso ter uma rotina; preciso acordar e saber que todo esse clico se repetirá. Faz bem pra mim.

Meses atrás vi uma frase que foi a fagulha que faltava para escrever esse texto (para você ver que realmente demorei até terminar):
Nesse sentido, comecei a vasculhar minha mente não tão caótica e cheguei em duas referências, a dois amigos; um deles de longa data: Machado de Assis e Muhammad Ali.
Não seríamos quem somos sem nossas referências. Estudando e admirando toda a vida desses dois, percebi que possuo algo em comum: o poder da repetição.
(Infelizmente não é a habilidade de escrita e nem o talento para o boxe).
Machado e Ali faziam a mesma coisa todos os dias. Eu não sei o que Machado de Assis respondia quando alguém tentava forçar assunto.
— E aí, Joaquim! E as novidades?
— Ah, passei 14h escrevendo, assim como ontem e anteontem e há duas semanas atrás, assim como farei amanhã. E você?
Embora no âmbito pessoal era uma desgraça atrás da outra, Machado é um exemplo de pessoa que, profissionalmente falando, fazia o mesmo todos os dias. É a prova viva de que a repetição é o caminho para ser bom. Veio de origem pobre, era descendente de escravos; perdeu a mãe quando criança, depois o pai quando adolescente e mais tarde a madrasta. Aos 25 anos já não possuía nenhum familiar vivo. Sofria de crises de epilepsia; era gago. Teve pouca educação formal, foi autodidata e aprendeu a ler e escrever por conta própria; aprendeu latim com um padeiro. No final da vida, viúvo, sozinho e com a saúde extremamente debilitada enfrentando crises de epilepsia escreveu “O Memorial de Aires”, uma de suas melhores obras. Isso sem mencionar que foi um homem negro em um país marcado pela escravidão.
Em meio a tantos dilemas, complexidades e péssimas novidades, Machado fazia o mesmo todos os dias. Esculpiu o seu talento dia após dia; levava jeito, mas não foi fácil ser reconhecido.
Pulando para outra época, um pouco mais recente, nascia em 1942 um rapaz que durante toda vida precisou de usar de um esforço combativo para se estabelecer e se desenvolver. O menino de corpo mirrado, franzino e que, segundo o seu próprio treinador, não levava jeito para o boxe: Cassius Marcellus Clay Jr, após a sua conversão, o famoso Muhammad Ali-Haj.
Sua história já é mais conhecida. Já que não tinha o tipo físico ideal para o boxe, como falavam, Ali reinventou o esporte. Mudou o modo como o boxe era praticado. Ao invés de ficar no centro do ringue, parado e com a guarda levantada, Ali introduziu o jogo de pernas e a esquiva como parte predominante de sua luta, sem falar na característica guarda baixa adotada posteriormente por diversos lutadores sob forte inspiração de Ali. Estilo que foi um reflexo de todas as batalhas que travou fora do ringue. Perseguições por causa de sua cor, desacreditado por diversas pessoas, assaltos, insultos, penalidades por rejeitar ir à guerra do Vietnã e o mal de Parkinson.
Chegou a lutar — e vencer — já com sintomas da doença. Antes do diagnóstico, seus reflexos foram reduzindo pouco a pouco e seus movimentos já não eram mais os mesmos.
O esforço combativo une essas duas figuras de modo que é impossível não se sentir impelido à repetição, à constância e, consequentemente, ao aperfeiçoamento. O que fez esses dois grandes homens executarem a mesma tarefas todos os dias? O que os fez não serem os mesmos todos os dias?
Esse texto termina sem nenhuma conclusão, e de propósito. Pode parecer que não saímos do lugar, mas te pergunto novamente: o que significa dizer que a sua vida é repetitiva? O que significa gostar e precisar dessa repetição?
Venceremos. Um pouco por dia, o mesmo todo dia.
Até a próxima.
Curti demais a parte do Machado de Assis. Deu até vontade de reler os livros dele. Vou dar uma olhada se acho algo na internet a respeito da rotina de trabalho dele.
Talvez "o segredo" esteja justamente aí.